Era assim conhecido o sapateiro mais famoso da minha infância. “Seo” Barandão. Muito mais tarde, tornou-se meu irmão na fé
frequentando a Igreja Batista em Itiúba. A rememoração antecede os tempos mais
contemporâneos. E, o motivo, eram os sapatos que ele fazia com tanto esmero.
Os sapatos do “seo Brandão”
pareciam feitos de aço, sob encomenda, do meu pai, para que não acabassem logo,
nos chutes e ponta-pés nas peladas e pedras chutadas a caminho da escola Goes
Calmon. Durava uma vida toda, o solado era enorme e grosso, de cadarços, invariavelmente
pretos.
Meu pai que tinha o sobrenome
Brandão ficava fulo da vida quando alguém o chamava de “seo Barandão”. A resposta era
incisiva e cheia de significados: “Barandão é o sapateiro e não eu”.
Dávamos muitas risadas, porém “seo Joaquim Brandão”, homem fino e
educado, soteropolitano, nascido no Porto
dos Tanoeiros, na beirinha do mar e criado no Itapajipe, em plena capital da Bahia, orgulhoso da vida,
mas que preferiu morar nos sertões de Itiúba,
naquela terra aonde o vento faz a curva, não se conformava com que lhe
trocassem o nome português, com certeza, mas sem saber, naqueles tempos, que o
sobrenome dele e nosso, era mesmo o correto
BARANDÃO com origem etimológica em um pedaço de barbante amarrado em
uma pedra ou até mesmo um barbante que servia como pavio de iluminaria.
Pois bem, os sapatos eram
absolutamente indestrutíveis e, não era um luxo serem feitos artesanalmente e
sob encomenda. Naquele tempo era coisa comum a todas as famílias. A indústria
ainda estava incipiente e, além do mais, os de fábrica, eram caríssimos, só
vendidos nas lojas das grandes cidades. Itiúba não os vendia, ainda. Os meninos
detestavam, uma vez que preferíamos o vulcabrás, mais maleável e apresentável,
comprado na Capital. Seo Brandão, o meu pai, queria
economia. Pai orgulhoso de uma prole de mais de dez rebentos, precisava, mesmo
com os vencimentos de servidor público federal e fazendeiro, mas sem renda, por
ser péssimo administrador, ajudar na economia doméstica junto a outros itens.
Vem à baila, também meu tio, de nome e
sobrenome Geraldo Brandão Cirne,
advogado de profissão que costumava brigar com quem o chamasse de “CISNE” em vez de CIRNE. Meu tio quase morre de
tristeza e apoplexia quando, um dia eu lhe disse toda a história da nossa
descendência, ou seja, nossa ancestralidade, aqui chegada, como ministro do Rei D. João VI aquele cheio de
bochechas com cara de estátua de igreja católica, corno sacramentado, não
obstante casado com a espanhola requentada e azeda, esfregando-se em quem
aparecesse, D. Carlota Joaquina a
quem lhe serviu seus apetites vorazes de alcova com alguns cornos suados e não
lamentados, por um escravo negro forro e cheio de dinheirama. O “Ricardão Joanino e Carlotesco”
não era da nossa família. Nós apenas sabíamos todos os rebuliços da alcova
maculada. A essa família destrambelhada, serviam os Cisnes como ministros
camareiros e testemunharam as safadezas da nossa princesa que detestava negros
e Brasil, enfim, o povaréu. Uma lástima. Antes eu não tivesse dito ao meu tio a
nossa origem, não tanto por ser o ancestral que deu origem pertencente à
nobreza avacalhada de Portugal, sobretudo com o fato de o brasão ser
constituído de dois cisnes superpostos com dizeres em latim, alusivos.
Então éramos em Portugal Cisne
e aqui, por obra e graça não sabemos do que, nos transformamos em Cirne, evidentemente com direito a brasão e
a parasitaria da Corte. Não nos orgulhamos nem um pouquinho essa nobreza
tropical depois de atravessar o ultramar. Na Bahia, já no avançado da história,
nossos antepassados contraíram casamento com o Barão de Barbalho e pronto. Êpa!
De Barandão
em Portugal passamos a Brandão aqui na Bahia e no Brasil.
Não consegui até o momento descobrir a razão de tanta mudança de nome. Papai
daria um colapso nervoso se eu lhe dissesse e ele soubesse que o nosso nome era
mesmo “BARANDÃO”.
Essa vida não é mesmo cheia de ironias!!!
Ora, pois, pois.
Max B. Cirne é historiador formado pela PUC-Rio e Advogado formado pela
UFBA.
WWW.ursosollitario.blogspot.com.br
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