As onças perigosas que caçou pareciam agora brinquedos de crianças, sente que a urina lhe escorre pela calça e a cena dantesca crava no cérebroe lhe impregna até a alma. Num espaço curto, porém que lhe parecera um século os fatos se desencontram no consciente e, onde jamais conhecera o medo sente que adormecera sobre a pedra, não de sono, mas de horror. Desmaiara mesmo de verdade. Recobra os sentidos, dobra o corpo para trás, os olhos agora não se dirigiam para a cena monstruosa, mas para o pé da pedra a procura de uma vassourinha,desespera-se por não encontrá-la naquele ermo, pois era preciso desencantar o bicho. Olha novamente para a pedra aonde deixava escapar um sussurro.
Lá estava um macho e uma fêmea. Não um casal comum e normal. De quatro pés parecendo uma cadela apoiada sobre as patas estava um misto de animal e humano. Sobre a cadela ajoelhada estava um dantesco animal, costas peludas, o rosto coberto de pêlos terríveis sustentado por um pescoço descomunal em grossura, pelas costas, fios e pêlos de bode escorriam até encontrar as nádegas do animal. As pernas menos cabeludas deixavam ver perfeitamente pés humanos no terminal do corpo. O animal cruzava com a fêmea coberto de pêlos, mas nas nádegas não tinha pêlos. As coxas do animal fêmea deixavam transparecer ser mais uma mulher. Mas era impossível, pois grunhia e sacuda a cabeça, as peludas mãos com imensas e unhas seguravam-na pelos quadris enquanto enorme falo entrava e saia em movimentos rudes e rápidos, deixando o macho a balançar medonhamente a cabeça para os céus por entre o encopado da umburana de cheiro, rosnando ameaçadoramente.
Januário agora estava mais calmo dirige a espingarda na direção do bicho, fecha o olho direito na pontaria insegura, grita pelo nome de Jesus, o bicho estanca os movimentos, a fêmea vira a cabeça, mas sem deixarem a posição, enquanto um tiro ecoa na ermidão da noite que se anunciara. Um baque surdo e um grunhido de cachorro ferido, depois um urro como que vindo das profundezas da terra. Sem tempo para recarregar, ainda procura no fundo da capanga atulhada de rolinhas e juritis, procura lá no fundo, tateando, o polvorinho, com dificuldade encontra-o, as mãos estão agora empapadas de sangue, deixa cair o polvorinho sobre a pedra, este rola ao pé do monólito bloco, dá um salto, apanha-o, despeja uma grane quantidade imensurável, não sabe quantificar e, no desespero coloca a bucha, apanha a vareta, soca a pólvora que não dá para colocar nova bucha, deixa lá mesmo a vareta da espingarda dentro do cano, puxa o cão, trepa rapidamente na pedra, os animais começam a se afastar de costas, medonhos, terrificantes, apavorados, ameaçadores olhando para o alto da pedra. Agora Januário já está em pé sobre a pedra. Sua estatura gigante se avoluma conta a penumbra enquanto a figura se desenha contra o negror da noite. Chama por Jesus Cristo, mira rapidamente e um novo e medonho urro ecoa nas serras enquanto o animal se debate, a fêmea procura fugir, plantas ao derredor ficam amassadas pela luta parecendo fatalmente atravessados com a vareta de socar a espingarda, urros apavorantes cortam o mundo e o animal se afasta rapidamente do local deixando as folhas farfalhantes e ramos quebrados ao impacto dos corpos em agonia.
Desce rapidamente da pedra e empreende a descida da ladeira da Serra o Cruzeiro em desabalada careira, até alcançar a ponta da rua completamente esbaforido e apavorado além de trânsido de medo, mas procura acalmar-se um pouco mais até alcançar a sua casa. Sabia que ninguém acreditaria nele quando contasse às pessoas, por isso mesmo conta apenas à mulher enquanto lavava os pés num gamelão de baraúna feito pelo Zé Reis, pois caçador que se preza na toma banho diariamente. A mulher pasma, não queria acreditar no marido.
Naquela noite os dois contritos rezaram o Ofício das Almas e um coroinha foi chamado para ler, na sua casa com alguns vizinhos, as Horas Marianas. Um breviário foi retirado do velho baú depositado lá por muitos anos e sem serventia que justificasse sua reativação e uso em outra ocasião que não aquela.
Ofícios e ladainhas ecoaram na casa de Januário quando um visitante chegou comunicando que Esaú havia caído numa moita de sisal furando o olho esquerdo. Isaltina estava toda furada de espinhos inflamados, pois na agonia de ver seu pai caído na moita, todo espetado, foi em seu socorro, ferindo-se, embora mais levemente.
Daquele dia em diante Esaú toda vez que passava por Januário falava umas palavras sem compreensão. Januário cismou que era Esaú e sua filha Isaltina. Esta, por sua vez, lhe fez vários convites para dormirem juntos ao que o velho caçador sempre se recusava. Esaú ficou cego e Isaltina ficou marcada na altura do joelho para sempre e, quando estava com os seus amantes lhe perguntavam o que lhe causara aquele corte de tão feia cicatriz, Isaltina fazia de contas que não ouvia, fazia muxoxos e mudava de conversa.
Januário desistiu de caçar. Aposentou a espingarda lazarina. As onças não mais existiam e só se aventurava caçar pelas redondezas do pasto do Valadares, às pequenas e saborosas rolinhas. Nos meses de março e abril não mais saía, nem até mesmo no fundo do quintal da casa.
Esaú e Isaltina cumpriam a sina triste e amaldiçoada de, a cada ano, a cada quaresma ou época perto da quaresma, agonizarem no seu pecado, transformando os dois em animais amaldiçoados. E para desencantá-los seria preciso que o caçador tivesse encontrado uma folha de azedinha ou de vassourinha, apanhá-la e colocá-la na boca do cano a espingarda. O olho esquerdo de Esaú, agora cego para sempre com o tiro dado com a vareta lhe vazara a córnea, mas não o matou nem quebrou o encanto mandingueiro. Continuava encantado.
Mas nas noites de lua cheia todos os anos, principalmente nas quaresmas, lá estava na frente da casa do Januário um enorme cachorro, a rodear e a grunhir até o dia clarear. Januário já velho e alquebrado pelos anos, quase sem visão, aposentou sua espingarda para sempre. A luz rubra do candeeiro atestava dento de casa o pavor que sentia Januário que rezava nessas noites o Ofício e suas ladainhas.
*** Itiúba, 1969