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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Itiúba e o bolachão do “seo” Antonio Castro



        Década de “50” enquanto o escriba era apenas um garoto com os costumes próprios da terra e da época, em formação. Toda sexta feira ou quase, chegava a nossa casa um hóspede conhecido por Borges. Nós o chamávamos “seo Borges”.
       Era um negão desses da cor do breu. Nunca vi, até hoje, um negro com a cor tão acentuada. Os lábios eram projetados para frente, não tão grossos, os olhos esbugalhados e intumescidos, careca proeminente, cabelos raros e escassos, lábios grossos e projetados. Era muito calmo e educado. De fala mansa, parecia demonstrar amizade e consideração com os meus pais que o recebiam com respeito e grande consideração. Após o jantar, que era lauto “seo” Borges se refestelava numa cama limpa, após um revigorante banho quente, não sem antes adentrar a madrugada em um bate-papo, cheio de mistérios e cochichos.
       Chegava indefectivelmente no trem das 19 horas. Vinha de suas andanças pelo mundo do meu Deus. Dizia que estava indo ou se dirigindo para Jacobina. Duraram tais visitas mais de três anos, e eram absolutamente regulares.
        Naquele tempo em Itiúba não existia feira nem mercados como hoje, de sorte que a feira acontecia apenas uma vez, durante o sábado. Geladeira não existia, impossibilitando de guardar e conservar alimentos, porque não existia energia elétrica, salvo a do velho motor, salvo engano Caterpillar que acendia às 19 h e apagava às 20 h. Um luxo! E era movido a diesel. Geladeira a querosene só apareceu muitos anos mais tarde, luxo que poucos se davam, gastando uma lata de 18 litros num só dia. Impraticável sua manutenção.
         Naquele dia, uma sexta feira, minha mãe adquiriu do “seo” Mateuzinho uma traíra pescada no Açude de Camandaroba, pelo dito cujo, apregoada e vendida na “bistunta” como tendo cinco quilos. Lembro-me como se fosse hoje. Seria o jantar da sexta feira da imensa prole. (éramos 10 ou 12 esfaimados rebentos). Repito nada se comprava fora do sábado, tivesse ou não dinheiro. A razão é que nada existia para ser comprado. Só no sábado.
        “Seo” Borges acabou de chegar ao pedaço, e, pior, quase na hora do nosso jantar. Naquele tempo os pais alimentavam as suas crianças, ao meio-dia e, à noite com alimentos sólidos.
        Mudou tudo. “Seo” Borges aboletou-se à mesa, tendo meu pai, como era da tradição, ocupado a cabeceira, seu lugar por direito. Meu pai quase não comeu a traíra que seria nosso jantar.
          Naquele tempo do meu Deus, crianças não se sentavam à mesa junto aos adultos. Só depois, e, separados. Nós, de olhos arregalados e famintos (crianças não mentem) sentíamos as barrigas roendo de fome, enquanto “seo” Borges traçava, insensível e sem consideração, a nossa traíra. Minha mãe levava a mão à boca e exclamava baixinho: “Meu Deus, a comida dos meus filhos!” “Seo Borges triturava a traíra, não parava para catar as espinhas, fazia-o com uma maestria, apenas usando os lábios de negão, mexendo os maxilares, que hoje, passados mais de cinquenta anos, jamais deixei de ficar impressionado com sua maestria e capacidade de catar espinhas de peixe, e, em especial, daquela bendita traíra.
       Dentro de pouco tempo só restou àquele enorme espinhaço. Nem restos “seo” Borges deixou para nós.
        Max venha cá e vá até a padaria do “seo” Antonio de Castro e compre uns patacões. Eram umas bolachas enormes, de água e sal, terrivelmente cruas e sem gosto, insossas, desprovidas de atrativos, intragáveis. Todos tomaram raiva do “seo” Borges! O infame havia deixado a todos com fome. Meu pai, extremamente carinhoso e zeloso, verdadeiro gentleman teve de suportar o mal educado, mas nada disse. Minha mãe ficou revoltada, porém, como boa e excelente anfitriã, nada podia fazer. Mas se revoltou. Era o nosso jantar dos seus filhos.
       Outro dia, numa excursão de volta aos sertões, vi umas bolachas daquelas que o vulgo chamava de patacões. Acho que pelo tamanho exagerado. Horríveis. Dei muitas risadas.
       “Seo” Borges era um sargento aposentado (reformado) da Polícia que atestava mortos e desaparecidos. Meu pai tinha interesse em descobrir o paradeiro do anunciado “morto,” primeiro marido da minha mãe. Como excelente cidadão, respeitador e de vida ilibada queria casar-se civilmente com mamãe, porém não podia fazê-lo sem a certeza da morte do “outro”. “Seo” Borges tomou muito dinheiro do meu pai. Era quase semanalmente. Só muito mais tarde, desaparecido “seo” Borges, possivelmente nas calendas dos infernos, é que meus pais nos contaram a motivação da visita do “velho Borges”.
       Quando visitarem os sertões, experimentem comer alguns patacões. Continuam sendo fabricados, embora não pelo grande e honrado homem chamado Antonio Castro.
Max Brandão Cirne
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