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segunda-feira, 27 de junho de 2011

O CIRCO DO PEDRO CORUJA.


Programada para a noite daquela sexta-feira, Pedro Coruja pretendia abalar a cidade através do seu circo, trazendo atrações realmente diferentes do que até então havia apresentado em outras cidades. Aquela temporada de apresentações deixara a companhia circense absolutamente feliz com as perspectivas de em cada cidade repetir os sucessos das outras. Do palhaço Cheiroso às formosas rumbeiras deslumbradas, desde o artista mais humilde ao malabarista todos trabalhavam com frenesi para levar o circo aos píncaros da glória. Os salários estavam em dia, a lona estava novinha, os animais bem alimentados e a artistagem não mais estava obrigada a dormir sob a empanada, sobre as tábuas das gerais. Tudo isto acontecia exatamente pela excelente administração do Pedro Coruja e a sua fama de proprietário capaz.

Razão, pois, encontravam os artistas quando receberam ordens de hospedagens nos hoteis mais disponíveis e melhores da cidade, estando tamanha fartura se repetindo desde outras cidades por onde passaram. Já não eram obrigados a se alimentarem mal nem dormirem sem conforto, bem como fome não passavam.

Na sexta-feira será apresentado um espetáculo em três atos, drama de repercussão, onde a protagonista seria uma mulher da Idade Média que por te sido infiel ao esposo fora condenada pelo rico senhor a morrer pelo punhal vingativo, com a sanção social,.

O palhaço Cheiroso com suas enormes perna de pau, desde a segunda-feira havia anunciado o espetáculo, dando bastante ênfase ao dramalhão, coroando deste modo o valor do mesmo. Além do mais, como incentivo, Pedro Coruja resolvera ao mesmo tempo promover aquilo a que chamava de “a noite dos casais”. Ou seja, quem fosse acompanhado de uma figura feminina qualquer, só pagaria uma entrada, ou o ingresso do cavalheiro.

Por motivos óbvios, a função só começava mesmo lá para as nove horas da noite, muito embora o circo sempre anunciasse que começaria impreterivelmente às oito da noite. Assim, esperavam os responsáveis lotar o circo desde o “poleiro” até os camarotes que afinal não passavam de cadeiras bem dispostas, algumas não suportando o peso dos expectadores, quebrando-se entre uma apresentação ou outra da artistagem e fazendo, nessas ocasiões, que as galerias assobiassem e gritassem em vaias terríveis para sufoco do infeliz que acaso fosse o acidentado.

O relógio já marcava quinze para as nove da noite quando de repente uma mulher trajando um lindo vestido cintilante, cor preta, sapatos à Luiz XV adentrou aos camarotes sendo conduzida por um trapezista, rapagão que possuía, para seu desespero uma parte da cabeça absolutamente lisa de cabelos, tendo sido provavelmente resultado de alguma queda na sua arriscada profissão, obrigando-o por conseguinte, ao uso de um chapéu à cowboy, só o retirando mesmo quando substituía por uma amarfanhada peruca que lhe escondia o terrível defeito.

Este no lugar do lanterninha dos camarotes conduzia respeitosamente a bela mulher, de todos conhecida, na figura da nossa já famosa e conhecida que era dona Carminha. O circo quase veio a baixo no alvoroço da gandaia jovem. Assovios intermináveis, gritos, ofensas e vaias e mais vaias as mais variadas aumentando o dissabor especialmente dos vizinhos de cadeiras de dona Carminha. Na cabeça u fino e reluzente broche de madrepérola encimado por seis cristais reluzentes cravejados de rubis vermelhos que multicoloriam quando ela fazia o menor movimento com a cabeça. Um chale preto sobre os ombros descia até a altura das nádegas, em cascata, bruxuleante e de cores negras. Os sapatos ornados com fivelas minúsculas da cor da mesma combinação geral da roupa, e um farto decote mostrava as lindas costas nuas até abaixo da linha da cintura deixando os fartos e apetitosos seios quase à mostra. Ao sentar-se na cadeira simples, as nádegas da senhora encaixaram-se entre a madeira lateral da cadeira afundando e projetando-se a fartura roliça e bem proporcionada, como se entalada estivesse naquela cadeira de circo.

A professora Vânia ao lado começou a dar mostras de impaciência, pois esperava ao seu lado uma outra senhora da sua tradicional sociedade, começando, para desespero de Carminha, a cochichar com o marido do outro lado de si. Via-se que a professora não estava muito à vontade, mostrava-se inquieta e denunciava a simples presença de Carminha sentada ali, desavergonhadamente, logo perto dela, uma das mais recatadas daquela comunidade.

Por toda a área do camarote via-se perfeitamente o mal estar das demais senhoras, muito embora Carminha ainda não tivesse descambado para a vida de boemia como mais tarde iria fazer e ser encontrada disponível para quem pagasse, em disponibilidade para quem quer que a pretendesse.

A ponta de inveja era sensível uma vez que Carminha vestia-se com aprumo e beleza, gastava roupas caríssimas, vinha de família que lhe fazia todas as vontades e desejos, usava jóias refinadas e, naquelas circunstâncias, não era justo que Carminha tivesse a ojeriza das demais mulheres, inegavelmente no seu porte e vestir-se como ela, poucas ou quase nenhuma sabia. Quando vivia com o marido era verdade que este a presenteava de todas as maneiras cobrindo-a de ouro e de finas roupas. A inveja aliava-se, pois, à maledicência com a agravante de ser ainda uma das mais jovens mulheres.

O relato do Quitinho, seu primeiro amante e, logo depois o rapaz que lhe servira como motorista com ela teria mantido relações sexuais no caminho de Bonfim, fazia com que ela fosse encarada como infiel, e, por isso deveria pagar pelos pecados horríveis os quais consistiam em ter cedido na fraqueza do turbilhão da carne embrasada, especialmente para rapazes tão jovens.

Dispunha assim toda a sociedade aliada ao fato de ter sido infiel mesmo e ter sido esposa de um homem sério e trabalhador, porém acomodado, por todos os títulos. Sendo o seu marido homem benquisto, não era de surpreender aquelas damas demonstrando tanta ira contra ela. Alguém diria que Carminha havia decaído no caminho da avoenga mariposa dos lupanares, outros diziam que ela obedecera aos instintos desenfreados da carne que não liga para a sociedade. Mas quantas ali provavelmente não tiveram a oportunidade de se darem, ou quantas não cederam e, talvez, por sorte, nunca foram pegas ou descobertas? O pecado tornado público é o execrado por todos.

Ela teve a coragem e a ousadia de assumi-se e escolher seu fadário. E isto o fazia por convicção, daí instar às suas companheiras a se igualarem a qualquer mulher, casada ou não.

Iniciada a função lá estava toda a trupe se apresentando para o público. Palhaços, malabaristas, mulher- de -bigode, rumbeiras e todo o elenco. O palhaço Risonho, cara colorida, enorme bocarra, achegou-se ao meio do picadeiro, calças folgadas, sapatos de quase meio metro de comprimento a fazer gracejos. Carminha ria como toda criança no circo já que ali adulto se transmuda em criança!

Após o palhaço entra um casal de adivinhos de circo. O homem vestia impecável smoking aproximou-se de Carminha, tomou sua mão, retirou o anel de brilhantes e perguntou,de costas sentada no meio do picadeiro a adivinha, com uma venda preta sobre os olhos respondeu que era um anel, como vestida estava e em que fila da cadeira. O circo quase vem abaixo. A algazarra ensurdecedora escondia uma voraz crítica. Lá, da geral, alguém gritara: “É da puta do Quitinho”! Mas Carminha estoicamente resistiu. Não abaixou a cabeça, não ruborizou, recolocou o anel no dedo e, com as pernas magnificamente cruzadas permaneceu impassível.

Os trapezistas evoluam nas alturas e Carminha absorta, olhar grudado no trapézio. “Voador –de-ouro” dava saltos e fazia piruetas, saltos mortais no ar, desafiando a gravidade terminando sua apresentação, chegou-se até ela, retirou do bolso uma rosa amassada entregando-a dizendo palavras ininteligíveis.

Um a um o elenco se apresentou chegando finalmente a derradeira e última apresentação da noite. Era o drama em três atos em que no primeiro seria retratada a vida normal que casal da Idade Média , o segundo de como se apaixonara a mulher pelo empregado da casa e o terceiro a ocorrência da tragédia. O marido descobrira a infidelidade da esposa e resolve por fim à vida da infiel. Vende todos os bens, desterra os filhos para a casa da parentela enquanto no desespero da vergonha torna-se maltrapilho. A infiel não se incomodou continuando a vida nababa de devassidão com o seu novo amante até que o desfecho se faz com aquela punhalada em que deixava cair papel crepom picadinho, dando a impressão de sangue de verdade. A impassividade de Carminha era vista de longe por isso que, quando a mulher foi apunhalada na peça ela abaixou a cabeça enquanto dos seus negros olhos duas lágrimas rolaram grossas.

Evacuado o circo, finda a função, Carminha lá permaneceu. Dir-se-ia que ficara petrificada com a cena do assassinato e, ainda mais com a semelhança e identificação da sua própria história. As luzes se apagaram, todos se foram, menos Carminha.

No outro dia, entre sete e oito do dia, toda despenteada, as roupas amassadas, imensas olheiras diziam perfeitamente que Carminha não teve uma noite de bom sono.

Depois se soube.

Carminha no desvario da sua alma e sina havia seduzido o artista do circo que fazia o papel de empregado e conquistador da patroa na cena da peça e história.

Subiram as gerais, juntaram algumas tábuas que serviam de assento para os expectadores e fizeram amor até o dia raiar.

Carminha provava para o artista que a vida realmente imita a arte.

***

Junho de 1971.

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