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sábado, 11 de junho de 2011

O DOIDO DUDÉ.

O DOIDO Dudé jurava e batia pé firme, afirmando com muita convicção que o “lubi” havia passado correndo por ele no local em que ficava a ponte de madeira, que afinal não era ponte coisa nenhuma, simples pinguela reforçada com pesado toro lavrado por onde aquela gente da Rua do Alto do Mingau passava em direção à cidade.
Fato é que ninguém duvidava da existência do lobisomem, havendo aqueles mais sérios e refinados que desciam a detalhes incrivelmente testemunhados por várias pessoas. Dudé afirmava que vira o lobisomem no dia de quinta-feira quando retornava para sua casa, ali por volta da 11 horas da noite. Tinha o Dudé o belo habito de subir a ladeira de pedras cantarolando velhas canções, tornando-se conhecido, assim iniciava a sua subida, religiosamente à 11 horas.
Alto, esguio, cabelos encarapinhados, negro, forte e espadaúdo, poucos conheciam naquele rapaz a capacidade de suportar peso, embora nos seus poucos mais de dezoito anos. Nascido na cidade, filho de Antonio da Dedela, as pessoas não costumavam dar crédito às suas histórias, sendo absolutamente civilizado, embora portador de anomalia ou distúrbio psíquico. Desde menino suas doidices como se costumavam dizer na vizinhança, o fazia respeitado por outros meninos que na costumavam azucrinar o rapaz, mesmo porque, bem verdade, se diga Dudé não primava bulir ou aporrinhar a vida de quem quer que fosse limitando quando muito, a traquinadas próprias sem maiores irresponsabilidades, embora como já dito, fosse louco.
Louco manso e civilizado se assim se pode dizer sendo sua preferência arreliar o Vavá-Bom-no-pó, velho tísico que costumava fazer brincadeiras com a criançada jogando confeitos e caramelos de café com leite para a criançada nas noites enluaradas com tentativa de apagar a triste Idea que tos dele faziam de ser um bruxo enclausurado, sem registro de onde viera, o que fazia ou qualquer coisa. Gozado pois, ninguém leva o Dudé a sério, especialmente quando ele se punha na maior cara e pau a descrever com trejeitos, de momice e gaiatice como era o andar do lobisomem que passara por ele justo em cima da velha ponte com a cachorreira latindo e grunhindo, no que era perseguido pelo escândalo de toda a cachorrada da vizinhança a grunhir e a latir.
Na quinta-feira, sobre o leito seco do riacho que desce do Coité, nas invernada, o lobisomem não podendo mais suportar o assédio dos cachorros, despira sua cabeluda pele e, dele saía, finalmente o homem, criatura amaldiçoada que não conseguia resistir os encantos de uma lua cheia.
É verdade que não existia apenas um lobisomem naquelas paragens, sendo, igualmente conhecidos de todos, o velho Augusto da Serra da Itiúba que fornicava com as filhas, transformando-se, nas sextas-feiras santas e nas quintas, no temível e terrível flagelo da humanidade, daí saindo à cata de criancinhas pagãs para devorá-las onde as encontrasse,razão das maiores preocupações de todos os pais que tratavam, antes da chegada dos dias fatídicos,de levá-las à Igreja Matriz onde eram recebidos, a toque de caixa, tal o poder que o amaldiçoado exercia sobre eles.
Dudé vira, então, o monstro despir a pele. Primeiro começou a espojar-se na areia fina e alva do riacho seco com grunhidos os mais terríveis, ora gemendo, ora chorando, enquanto as mãos iam aparecendo, os braços, as pernas de humano, a cabeça tomando formato de humano, os dentes se justapondo, surgindo da sua inteireza um homem branco com duas pequenas entradas na cabeça, sinal de calvície precoce, para, logo imediatamente, brandir no ar um porrete com o qual se defendia dos cães em azáfama, com milhares de latidos ensurdecedores, ora grunhindo sob as bordoadas do ex lobisomem tudo às visas aterrorizadas do Dudé. Muito mentiroso ninguém poderia duvidar do Dudé, pelo menos aqueles que ouviam seus terríveis gritos, sendo Júlia Preta testemunha da gritaria e da desabalada carreira que nosso personagem deu, com medo e pavor do bicho da semana santa. Os latidos foram parando enquanto o homem, agora na sua natureza normal, caminhava sorrateiramente e apressado por dentro do pasto dos Damascenos, pulando uma segunda cerca de arame farpado e embrenhando-se no pasto do Padre, desaparecendo finalmente na penumbra nas cercanias do pasto do finado Augusto Moura.
Levando embrulhado um enorme objeto,afirmou-se, mais tarde, que era uma pequena criança pagã que seria devorada tão somente chegasse o monstro fora das vistas das pessoas, antes mesmo do dia amanhecer, pobre criancinha que não veria o dia com os seus pais e irmãos.
O Dudé tinha na verdade, de vez em quando, verdadeiros surtos criativos de mistérios, lembrando os que ouviam da vez em que ele vira nas imediações da ponte uma alma penada a querer lhe enforcar, subindo a estrada que dava em sua casa em desabalada correria, a pedir socorro, pois no dizer dele a alma penada do outro mundo vinha ao seu encontro. Diante dos seus gritos terríveis, e não conseguindo atingir a casa dos pais, caiu trânzido de medo no passeio da casa do tio Antonio da Maricota, sendo socorrido pelos primos e pelos tios lhe oferecendo água até quando o cidadão restabelecido voz e fôlego passou a narrar o acontecido.
Provoca a que uma verdadeira patrulha de valentes resolve descer a rua até a ponte. O Dudé não teve forças nem coragem, denotando seus gestos uma pessoa apavorada e atemorizada pela dantesca visa da branca alma penada que do outro mundo viera para assustar os viajantes daquelas paragens. Facas, varapaus, porretes e enxadas, pequeno cortejo descia a ladeira, cada componente fazendo-se muito corajoso, e, por e turno, cada um preocupado em proclamar para o grupo suas virtudes de que iria ao encontro da alma safada e daria um supetão na pobre. Outros chamavam a alma descarada e que não devia estar fazendo medo às pessoas. Os mais penitentes e religiosos atribuíam a alma ser de fulano, sicrano ou beltrano,e que estava penando no mundo para descontar seus pecados e que ela viera para pedir que se fizessem penitencias. Uns ainda diziam nomes dos falecidos, outros, faziam atribuições ao coronel fulano que morrera de matar escravos, outros diziam ser a alma do Padre Severo facínora famoso e desalmado que estava a assustar as pessoas. De ânimo belicoso e mata almas o pequeno grupo formado por rapazes na flor da idade, queria por que queria, provar ao Dudé que alma não fazia medo a ninguém. Pelo menos aquele grupo de louquinhos sertanejos.
No local indicado, à beira da estrada, o grupo começa a preparar e empunhar suas armas, pois, de longe lá estava a terrível alma. Pé ante pé, o grupo aproximou-se. Cauteloso, cuidadoso e... depara o grupo com uma soberba lã-de-sêda esgarçada e revolta, suas folhas grandes deixando aparecer a parte branca das folhas, terror de muito valente nas estadas que a sua visão, pensava tratar-se de almas penadas, do outro mundo.
Alguns muito corajosos caíram em cima da pobre “alma” com seus varapaus e porretes em poucos minutos deixando apenas a galhada desnuda de folhas, estas juncando ao redor do que houvera sido uma frondosa lã-de-sêda atapetando o solo áspero, agora coberto do leite branco e ácido da pequena plana nativa.
O peito dos “heróis” arfantes pela façanha, agora propagandeava na madrugada, em alarido incontido de adolescentes imaturos as virtudes de cada um e a covardia do pobre Dudé que trânzido de medo não ousou acreditar tivessem “morto” a pobre alma e, por isso mesmo seus tios tiveram de providenciar uma esteira de licurí para que o Dudé dormisse até a manhã seguinte .
Façanha digna de nota, entretanto ocorrera antes com o mesmo Dudé. Sabendo a criançada do terrível medo daquele rapaz, um filho do “Seo Joaquim Brandão, de apelido Nenê-Bosta-Docê partiu uma cumbuca de melancia e depois de retirar todo o suculento do seu interior, fez aberturas em formato de cabeça, olhos, nariz e boca acendendo no seu interior uma vela e colocando na estrada de chão batido por onde adredemente sabia ser passagem obrigatória do Dudé, vindo da casa do seo Manoelinho da Dona Rosinha. Era carreira desabalada que o Dudé dava, não ficando os que assim procediam a espera dos seus irmãos, pois sabiam que a reprimenda vinha de mediato já que eles o protegiam das maldades daquela cambada de desocupados que arreliavam o rapaz.
O mais surpreendente é que, quando o Dudé estava a jogar sinuca no Bar Central do Carlos Pires, ficava com um olho na bola, outro na caçapa, e outro nos vizinhos, pois não tinha alma viva deste mundo que fizesse o Dudé subir a ladeira sozinho, fosse a que hora fosse da noite. Com frequencia o pessoal ficava escondido, procurando sair sorrateiramente, escondendo-se mais adiante onde pregariam baita susto no Dudé.
Pois bem, o seu medo era proverbial chegando a tamanho que se perdesse a “carona” dos seus vizinhos de rua o Dudé só chegava a casa se alguma pessoa caridosa fosse levá-lo.
Dudé vira naquela quinta-feira o lobisomem nu, perdendo seus pelos devagarzinho, porém nesse dia, mistério dos mistérios, o Dudé por ma dessas coisas inexplicáveis não arredou pé de cima da pinguela, enquanto embaixo e, a menos de cinco metros de distância um pobre lobisomem, porrete na mão, dizia impropérios para os infames cachorros que o perseguia. Parado, amedrontado não restava dúvida ao Dudé que assistia e abriu bem os olhos, e viu o lobisomem. Tivera, é verdade, muita sorte uma vez que o bicho não o vira, caso em que estaria irremediavelmente perdido. Na luta para livrar-se dos cães valentes, o lobisomem se esqueceu de olhar a seu redor, nem poderia fazê-lo, antes de livrar-se da matilha enfurecida, empreendeu apressadamente sua fuga adentrando a escuridão, recolhendo antes sua pele sob o braço, o que parecera à testemunha, uma criança enrolada na pele ou em algum tapo de pano tirado da mãe da criancinha. Na semana passada, notícias chegadas da Tapera davam conta de que durante a semana o lobisomem não deixou ninguém dormir, todos apavorados com o trotar do imenso “cachorro” à cata de criancinhas pagãs. Era então verdade que sendo a cidade mais povoada, possivelmente ali estaria para devorar mais criancinhas.
A luz do fifó da casa mais próxima, não deixava, pela sua pobreza, alcançar reflexos de luz. Mas Dudé, testemunha se credibilidade, conseguiu ver claramente quem era o lobisomem de Itiúba. Contando aos pais, estes gritaram conta o filho, perguntando se “ele era doido” de espalhar uma conversa daquelas na cidade. Estariam perdidos.
Verdade que um se tio de nome Mateuzinho testemunhara um dia um certo lobisomem, sendo portanto muito respeitado, porque tivera a coragem de enfrentar com um porrete. Acontecera que a mulher do cidadão tendo viajado para a capital e, sendo o mesmo um chefe político local pretendia dar uma escapulidinha. Justo na noitada de farra sexual, o amasio da Isaltina chega sem aviso obrigando o “lobisomem” a desabalar da casa de Isaltina e do leito de pecados, afundando na estrada, causando alarido na cachorrada que se enfiara atrás do libertino lobisomem que não contava Mateuzinho subindo a ladeira naquela madrugada. Mulato desarnado, pau de toda obra, resolve que aquela será a oportunidade de dar um fim e quebrar a pauta do bicho medonho. Enfrenta o danado do bicho, sacode com força o porrete nos peitos do “lubi” que estanca, adquire voz ... e fala.
Na segunda bordoada do malvado Mateuzinho, pois este só queria mesmo era penalizar o bicho que murmurava e gritava ao mesmo tempo:
-Mateuzinho! Sou eu.
-Eu quem fio de égua?
Passara-se um inferno naquele instante para o infeliz o lobisomem, enquanto Mateuzinho farto de coragem distribuía bordoadas à mão cheia. Acossado de um lado pelos cães açulados, pela sua frente uma barreira intransponível representada por Mateuzinho e seu porrete desastrado, bordoadas batiam fofas nas costas do lobisomem, sem dó nem qualquer piedade.
-Mateuzinho diabo doido. Sou eu, desgraçado.
-Eu quem, fio da puta. Já viu lubi falá?
-Sou eu, Mateuzinho!
- Eu quem, disgraçado?
Mateuzinho quase desmaia de medo e pavor! À sua frente um simpático e desalinhado, mão no peito arfante, voz acabrunhada, medo estampado na face, o chefe político sem palavras para as explicações. Estava descoberto o segredo daquele homem exemplo de virtude e de seriedade, marido de uma das mais belas senhoras da cidade, homem de palavra, mas que cedera às paixões e caprichos da carne, em frêmito e na calorosa paixão. Apaixonara-se por Isaltina, a filha de Esaú, a mula-de-padre que atanazava os sertões.
O segredo de Mateuzinho, agora era partilhado por seu sobrinho Dudé que por ser doido ninguém levava em consideração o que dizia e afirmava. Só aos mais chegados, aos mais amigos, aos mais íntimos, mesmo assim ao pé do ouvido Mateuzinho contava sua história, ao tempo em que repreendia Dudé para que nada falasse a ninguém senão ele iria parar na prisão e jamais sairia de lá.
Setembro de 1987.
***

Um comentário:

  1. Precisamos estar atentos aos relatos locais, pois podem ser um rico material tanto histórico quanto memorialista. A História oral apropia-se dos saberes populares para com base na Nova História dar voz aos excluídos dos documentos oficiais.

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