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segunda-feira, 20 de junho de 2011

UM TRAIDOR DE CANUDOS

Amanhecia e a Vila preparava-se para mais um dia de lutas. No corre corre diário os chefes dirigiam-se para a pequena igreja. Armados, tomavam acento na pequena nave, ouviam a prédica matinal do Conselheiro, recebiam hóstias e voltavam a reunir-se a uma voz de comando no meio da pracinha.
Vila Nova não apareceu. Cerca de cinquenta oitenta homens do seu comando, aguardavam-no. Zé Perninha impaciente arrastava a sua manca perna, de um lado ao outro enquanto mascava um pedaço de jabá, das melhores que era vendida para os lados da Vila Nova da Rainha. A casa de Vila Nova estava fechada. A pequena choça coberta de ariri estava sob um terrível silencio e embaraçoso. Uma janela semi aberta deixava ver o seu interior minúsculo. A mulher, calada estava sentada sobre uma banqueta de três pernas chorava silenciosamente. Vila Nova havia fugido deixando a família, rumando para Pernambuco de onde possivelmente viera desde os tempos em que o Conselheiro por lá passara fazendo suas pregações e o trouxera consigo. Pois bem, Vila Nova selara um burro e juntara uns “trens” em lombos de dois jumentos e partiu dentro da madrugada.
A pracinha do casario disforme era agora ocupada pelos remanescentes, justamente aqueles que recebiam as ordens diretamente e Vila Nov. Não há como negar a destreza daquele homem, sua fibra que o transmutara de pacato rezador para um dos mais ombreados lutadores, constituindo em parte, no mais fino escol guerreiro que já pisara aqueles sertões. A sua coagem no corpo-a-corpo, costumavam relembrar seus companheiros, até mesmo o dia em que Vilanova sozinho com sua inseparável parnaíba havia sangrado uma patrulha militar composta de cinco soldados. Outros, porém, diante da notícia de deserção do chefe se punham a falar que Vila Nova era um traidor e não era tão corajoso.
O burburinho grande exigia que o cabeça fosse logo substituído, pois o arraial vivia o prenúncio do fim.. Os homens foram rudemente atingidos muito mais pela constatação o que pelos canhões do Salomão. Nem o assédio da “força fraca do governo” poderia causar tamanhos estragos mais que o fato de saberem que um dos seus havia debandado e perdido a fé a coragem. Havia estado tanto tempo, e lutado tantos anos que a notícia parecia mais uma piada de mau gosto, não imaginando jamais que entre eles houvesse um traidor. Foram ao Conselheiro. Este soturnamente orientou para que os homens perseguissem Vila Nova e o trouxesse à sua presença para conversar sobre os murmúrios. Sobretudo desejava saber com conseguira, sozinho, sair da Vila já que se encontrava em completo isolamento. Planejou dois homens que sairiam a noitinha, tentariam atravessar a linha inimiga na direção do Uauá, o que lograriam fazer sem dificuldades já que estavam a pés e não conduziam alimárias que certamente iriam denunciá-los pelo tropel. Da estrada do Cumbe à estrada do Monte Santo; de queimadas à Itiúba; do Cambaio ao caminho da Mombaça passando pela Faveleira, tudo fora vasculhado. Debalde.
De repente, uma surpresa. De cima do cabeçote de um morro dois cabras divisaram o Vila Nova. Chapelão de abas na cabeça a medida que o animal desafiava e vencia a estrada num picado irrepreensível, aquele chapéu oscilava e nem se dava contas de que ia seguido pelos outrora companheiros que tinham a missão difícil de trazê-lo de volta ao Arraial de Canudos. Eis que, sem ninguém esperar, surge uma coluna de soldados desgarrados, provavelmente dos que pertenciam ao Savaget, o tenente mais ousado daquela expedição. Era mais uma patrulha avançada ou mesmo perdida, que estava varrendo aqueles bravios sertões num raio de dez léguas, parando e inquirindo todos os seres viventes que por aqueles plagos ousasse.
A tropa bem alimentada se acercou de Vila Nova que estava alquebrado pelo cansaço da caminhada no sol a pino, além das lutas que já travara na vida. O tenente ordena-lhe descer rapidamente da montaria. Interroga-o. Um alferes o reconhece como um dos chefes. Começam a indagar sobre a situação atual do Arraial, víveres, combatentes, munição, etc. O alferes truculento dá-lhe um botinada nas costas secas, os soldados de pré como que extasiados começam a rir um riso macabro dos que sabem terem a presa nas mãos e não há como escapar-lhe. Vila Nova humilde permanece calado, enquanto cabisbaixo, embora na implorasse, como que a desafiar a morte, não pede piedade, mas o seu jeito de ser e portar-se na frente dos combatentes que tantas vezes participara e os derrotou, não podia, agora, pedir para aqueles que eram e tinham sido o carrascos dos seu amigos que tombara.. Não podia como a vida não lhe permitiu desfibrar-se, mesmo antevendo o sofrimento do arraial, de tantas crianças, mulheres e velhos morrendo mais de fome do que mesmo de balas da “força fraca do governo” pois que, de há muito a linha negra havia impedido de conseguirem comida farta. A lembrança dos canhões troando dia e noite, dos combates, do ritual diário de morrer pela crença e fé, recordações que fibravavam e faziam recompor o gigante num retrospecto da sua vida, possivelmente coração distante da cena ora vivido, agora envergonhado e arrependido, levanta a tez branca, encara o tenente e diz-lhe:
-Força fraca do governo, desce desse cavalo e me entrega a minha faca.
Os soldados fizeram seu festim.
De longe, do pequeno morro, os dois sertanejo por trás de moitas de icós, permaneceram.
Vila Nova, sangrando a carótida decepada deixava o sangue escorrer rubro pela terra como a desafiar a lei da gravidade, procurando, quiçá, os caboclos que o espírito já deveria ter avistado sobre o monte. Como se pretendesse mandar dizer aos seus, do seu pedido de perdão e de remissão da honra.
Nos lábios empapados de sangue, as últimas e derradeiras palavras, palavras que o redimiriam de toda culpa saída num grito rouco entrecortado, nas últimas, bradava:
-Viva o Bom Conselheiro.
Não obstante lograr sair da Vila o exército não lhe faria exceção, e, provavelmente no inferno, Moreira César gargalharia de satisfação, se é que lá existe. Sentença fatídica de não deixar pedra sobre pedra naquele arraial, começava a concretizar-ser com a derradeira expedição a se tornar realidade.
Porém, a glória fugaz do exército contra um homem só e desarmado, não poderia conter em página nenhuma de relatório de Campanha, bem como não poderia ecoar nas esquinas da Rua do Ouvidor porque revelaria os germens criminógenos de uma mancha contra um homem só, que nem o tempo apagaria. Morreu Vila Nova. Desafiante, ferino, combatente. Do outro lado uma cruel realidade tomava corpo e certeza, a de que, na primeira clarinada do dia seguinte, seis mil baionetas calariam, para sempre, o Arraial de Canudos.
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