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quinta-feira, 16 de junho de 2011

A BELA DO LARGO.



O destino implacável, os dogmas tabus e preconceitos de uma comunidade se abateram sobre a gentil mulher, fluindo e canalizando no seu pensamento todas as decepções acumuladas de uma só vez.
O mundo parece ter se acabado para aquela senhora. Passou a ser vista apenas pelas empregadas domésticas que se encarregavam de espalhar pela cidade que a bela mulher estava se definhando, e que, além do mais ficara tísica e não ia demorar , não se alimentava e não frequentava mais a missa como fazia religiosamente, não mais se reunia com suas amigas em animados bate-papos, não trocava ideias de como costurava e bordava. Seus olhos foram apagando com a cor mortiça dos desalentados, sua ampla casa no largo da cidade não mais abria janelas, persianas ficavam trancadas e as portas não permitiam mais ninguém atravessá-las, o padre Eutímio não mais teria uma das mais fieis na igreja de todas as missas das manhãs enregelantes dos sertões.
Perdera o alento e a esperança enquanto o Mario já começava a sentir tratar-se de caso perdido, iniciando, já agora, ele mesmo a contratar advogados para saber como procede com vistas a abandonar a cidade definitivamente com a mulher e os netos.
Carminha resolvera que os filhos ficariam com os avós para serem criados e receberem educação, porém o pai a proibira de visitá-los, renegando aquela de que houvera recebido alegrias e felicidades, comprometida então com nova missão de salvar aquelas pobres crianças.
Desde a fuga para a capital, já resolvera o casal que as viagens teriam necessariamente de serem mais amiudadas antevendo um clima de tristezas, na cidadezinha dos sertões, além de serem sempre objeto de perguntas indiscretas e de explicações que a família, afinal, não teria mesmo como dá-las, eles mesmos pegos de surpresa, em meio ao redemoinho dos acontecimentos.
Vez ou outra retornavam para a capital, de carro ou de trem, mas como fuga do que mesmo a passeio, enquanto a mulher ia definhando e perdendo a crença em tudo e em todos, na sua revolta compreensível, mas que não se podia atribuir culpa a quem quer que fosse das estripulias e catimbas da senhora Carminha.
As ameaças de irem embora não se concretizaram. A bela e educada dama não arredou pé da cidadezinha, mas os que a avistavam por cima do muro, esticando o pescoço, ou da lateral da casa, duvidavam que aquela fosse mesmo a mãe de Carminha, tão magra, esquálida e destratada, e, dava mesmo para ver que o desespero tomou conta daquela educada senhora premiando-a com a penitência sem fim.
Cabelos desgrenhados, mãos sem nenhum trato, vestidos repetidos e desleixados, seios balançando dentro das vestes, olhos fundos e sandálias de uso comum, sem nenhum atrativo, era o retrato vivo e desesperador de uma mulher de beleza natural e trabalhada de outrora, capaz de arrancar suspiros a todos os demais homens da cidade, ainda que não se confessassem entre si em respeito, mesmo porque ela jamais dera uma palhinha ou, como se dizia, ousadia a qualquer pessoa. Era irretocável e de ilibada reputação e vivência social e moral.
Quem avistasse aquela mulher de surpresa, (porque de outro modo era impossível),haveria de olhar duas vezes para a constatação do que os olhos testemunhavam. A pele branca e louçã, os lindos olhos aureolados, as lindas e formosas sobrancelhas era o retrato em preto e branco do que antes houvera sido. A fina e linda tez deu lugar, já agora, a manchas pardacentas de pano-preto, a pele perdeu-se da sua elasticidade e vivacidade e já não atraía os olhares de desejo dos homens deixando de causar inveja às mulheres de quem a grande dama recebia os principais elogios por sua beleza.
Outrora brincalhona com as amigas perdera a afeição por tudo e todos. Agora, era uma mulher que mandava dizer pelas empregadas que não estava em casa e que, caso desejassem, deixassem algum recado. Os amigos foram se afastando pouco a pouco,a casa bem cuidada deixou de ser pintada duas vezes anualmente e as plantas ornamentais foram perdendo as folhas e o vigor, como se estivessem a traduzir para os que as viam, as tristezas e decepções daquela casal.
O padre ainda tentou uma aproximação quando um circo acampou na cidade, aconselhando-a a assistir alguns espetáculos. Chegou, dento do máximo a que se permitira a pedir ao filho de Enocuos soldado, que lhe comprasse uma cocada puxa na porta do circo, enquanto na penumbra do quarto, sobre a cama, sentada por trás de uma pilastra, parecia aguardar o menino num sopro de alegria juvenil de comer a guloseima. As pessoas que passavam em direção ao circo não regateavam e agradeciam a Deus por aquela bondosa alma estar se recuperando e alegravam-se porque a imensa casa parecia ter se transformado em sepultura viva de uma mulher que não merecia, porque contas não tinha a acertar, tamanha a infelicidade agora alcançada.
Quando o circo ou algum parque de diversões chegava à cidade fazia a alegria de loucos, doidos e sãos, isto ainda sem contar a criançada a correr atrás do palhaço, a disputar, moleques travessos, cruzes marcando a testa que lhes garantia uma entrada gratuita à noite, para, no dizer do palhaço, assistir a função. Os moleques reuniam-se todos, o palhaço de pernas-de-pau assinalava de tinta, as testas, da criançada e determinava que saíssemos pelas ruas e becos até a tardezinha, aquela pequena chusma respondendo os ditos do desengonçado e alegre palhaço.
-” Hei raio sol, suspende a lua” – dizia o palhaço, “Olha o palhaço no meio da rua”- respondia a criançada alegre e inocente.
Na trajetória era caminho obrigatório passar bem em frente a casa da inditosa dama, pois o palhaço, com seu álacre cotejo de meninos, desejava era chamar a atenção de cada habitante, e, despertar neles, esses sentimentos incontidos, porém reprimidos socialmente dentro de cada criança que repousa dento de cada um de nós ainda que uma gama de dores e sofrimentos acumulados, no jornadear penoso do existencialismo, queira renegar a primeira e lúdica experiência de vida da humanidade.
Vem daí que um dia a louca Valentina aparece exatamente na hora em que a criançada estava recebendo o sinal de tinta nas testas, e ela, Valentina com a inocência dos loucos dispôs-se a acompanhar o cortejo, senão jogaria pedras em todos , rasgaria a lona do circo com muito espalhafato, além de ir buscar “seo” Pompílio Delegado para que prendesse o palhaço e aqueles meninos malvados.
Valentina era uma mulher d povo, desses loucos ditos “mansos”, cujos chistes e tiradas deixavam a todos fora do sério e com suas tiradas espirituosas deixava como que as pessoas com as barrigas doendo de tanto rirem, pouco importando se homem ou mulher, se imoralidade, conforme se dizia no tempo. Tanto que fez Valentina, o palhaço forasteiro resolveu pregar uma cruz de tinta na testa da Valentina, pois o sabia muito bem que a louca não podia fazer nem bem nem mal. Lá vai Valentina entre pequenos moleques a defender seu ingresso, logo mais, na função da noite, quando seria apresentada a peça “O Ébrio”, pastelão de circo mambembe e carro chefe dos dramalhões de tantos quantos circos apareciam na cidade. Ao passarmos em frente da casa da bela dama, destacando sua voz, do côro que deveria ser respondido, sem nenhuma malícia, seguindo a disritmia do seu cérebro, tasca Valentina o seguinte verso.:
-O bicho que mata homem
Mora debaixo da saia,
Tem a testa cabeluda
E língua de papagaio.
O palhaço não teve outra alternativa senão parar. A gurizada, curiosa, caiu na risada enquanto Valentina, qual criança crescida, levantava e abaixava a saia comprida. A pobre louca sentindo que seus versos eram respondidos com ovação da criançada, antes que o palhaço tivesse dado por si e acordado de que o seu espetáculo estava sendo roubado, entre trejeitos e momices, lança no ar, mais versos e diz:
“Escorreguei na bananeira
Agarrei no carrapicho
Corri a mão por baixo
Agarrei nos bagos do bicho”.
O palhaço sabendo que ali estava próximo à casa de família tradicional apressa o passo e, em largas passadas de quase oito metros de cumprimento, com suas longas pernas-de-pau, tenta chamar a cambada a ordem com um dos versos do seu repertório, aliás ,de todos os palhaços da infância da gente.
“Hoje tem espetáculo?” E a meninada respondia: “Tem sim senhor.” E continuava o palhaço: “Oito horas da noite”? E a meninada: “Tem sim senhor” e o palhaço alegre continuava: “Arrocha negrada” . E nós: “Arrocha”.
Lá distante o palhaço olhando para trás via Valentina atrasada, dançando e pulando no meio da praça e, de uma pilastra, numa grande casa, percebia-se, perfeitamente, uma senhora que mostrava s alvos dentes num sorriso amarelo e sem graça. Era a mãe de Carminha. A morta-viva já não tinha forças nem para rir.
Ao longo rumando em direção ao alto do Mingau, um enorme palhaço alegre e bizarro,com pernas descomunais, gritava:
-“Hoje tem marmelada?”
E a criançada alheia, alegre e feliz, irresponsável mas sem consciência dos dramas e tragédias da vida, felizes e álacres, respondia:
“Tem sim senhor”.
Mas assistir ao espetáculo da noite, reviver seu próprio corpo nas belas e desenhadas pernas e cinturas das rumbeiras do circo,ela mesma sentir-se uma rumbeira nas fantasias da casa, na cama com seu marido que a procurava com mais volúpia, sentir-se a mulher desejada, não a despertava mais. As rumbeiras serviriam, agora, apenas para humilhá-la, porque então, suas belas formas tinham sido apagadas, o sorriso e a felicidade desapareceram desencantadamente.
O marido já não a procurava mais. Senhor privilegiado de ter uma mulher escultural, agora, era verdade, ele descendo a escala social, não mais a procurava indo ao encontro da Luxuduí, meretriz da mais ínfima escala social, frequentadora do mais baixo bordel da cidade.
Tudo acabou.


Itiúba, 1973 Max B. Cirne
***

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