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segunda-feira, 20 de junho de 2011

UM MAESTRO DA PESADA



Clarindinho subindo a ladeira da pequena rua estava visivelmente embriagado. Na proporção do seu caminhar bamboleante, dava dois passos para a frente, e dois para trás, como se a desafiar a lei da gravidade na comicidade que termina por transformar as criaturas alcoolizadas. Chorava e falava sozinho, pouco importando as pessoas, essas já acostumadas àquela situação do Clarindinho.
Pai de família, não fosse a cachaça que entornava a qualquer dia da semana, poder-se-ia dizer, exempla. Homem pobre, não bastante a cachaçada sua família era tratada com muito carinho e seriedade e, pelo fato de ser um “bom copo”, no dizer da galera um bebedor inveterado, não deixava de prover as necessidades. Dava-se o caso que já com o sangue acumulado com álcool, não bebia tanto em quantidade quanto em qualidade, mas apenas tomava “duas doses de nada”e o pobre já estava pra lá de marrraqueche, reacendia naquele bom homem o fogo dos seus idos anos quando conquistou uma bela mulher, formando um feliz casamento, embora a pobreza lhe fosse a madrasta da vida.
Formara com a mulher uma linda prole de rapazes e moças bonitos, colocara todos na escola para os estudos, mas não chegaram nem mesmo a terminar o primário, alguns casando, outros arranjando filhos espúrios, e tornando-o um avô precoce.
Não foi, pois, a cachaça, dir-se-ia um pai exemplar, não que a bebedice não possa impedir de ser um pai carinhoso, tal o caso do nosso personagem, mas porque dava sua bebedeira, exemplo não muito apreciado para os filhos. Embora discutível Clarindinho não deixava a família passar fome acorrendo às outras necessidades, arrancando do seu trabalho humilde o pão e o sustento familiar.
Bem verdade que neste mundo todos bebem suas “cruacas” pouco importando a condição social e moral. Via sempre os ricos bebendo uísque importado, com pedrinhas de gelo, e via que muitos engoliam litros e mais litros, e ele aí na sua cachaça de álcool desdobrado. Outros já menos afortunados, tal o caso do Clarindinho, bebiam garrafas e mais garrafas de cervejas e, por que então, logo ele não haveria de sentir a garganta coçando e ardendo à passagem da cachacinha malvada de todo dia?Se bebia era porque gostava e, ademais, não era ele maior, casado, eleitor, brasileiro e vacinado? Pois, pois.
Como a bebedeira fazia-o caminhar em ziguezague, também possuía uma característica que era a de chorar como uma criança tomada sua guloseima, tornando-se um sufoco no outro dia quando passava em direção ao trabalho. Cabeça baixa, olhar pregado no chão, não suspendia a vista nem a cabeça virava para ninguém, não dava um bom dia, nem desgrudava as vistas do caminho. Talvez se mostrasse arrependido e envergonhado do papelão do dia anterior. Envergonhado o dia seguinte, cara limpa, não ousava encarar as pessoas. Mas, logo ao meio-dia ou à tardinha, tudo se repetia com o Clarindinho subindo o caminho que dava para a sua casa, três passos pra frente, dois passos para trás, dois para os lados e outros para acertar o caminho. Três pra frente e dois para os lados no seu caminhar cômico e muito tropecento, sem ranços de valentes de cachaça, ou em ranços incômodos. Não soltava nem dava palavrões nem desrespeitava famílias. Quando muito, um comentário dos seus vizinhos que reconheçam nele um homem extremamente sério, não tendo notícia de ter comprado fiado e não ter honrado com o pagamento. Sua cachacinha bem comportada, sem brigas e sem palavrões, se dava mesmo era no pé dos balcões, acostumado a abrir os dentes em risadas desconexas pelos efeitos etílicos.
Na pracinha da cidade armavam-se barraquinhas de quermesse, feitas de folhas de cariris, enquanto a moçada organizada recolha fundos, numa tentativa da igreja angariar fundos que serviriam para custear obras do templo ou até mesmo para a manutenção do pároco. Oito de dezembro marcava a data da padroeira da cidade. Lá no meio da pracinha um coreto bem ornamentado e, em cima dele, na a imponência das suas fardas, a Filarmônica da Polícia Militar de Juazeiro que vinha todos os anos tocar retretas e dobrados, tornava a festa mais bela, animada e concorrida.
A pracinha toda engalanada como só antigamente se viam essas coisas, recebia o capricho da carolada que se desvanecia em preparos e arranjos na festa do largo, ocasião em que, vez ou outra ocorria o baile, também na sociedade 2 de Julho, clube recreativo do escol da cidadezinha apagada e triste.
Naquele dia algo novo marcaria para sempre todos os habitantes da cidade. O tenente-maestro da banda tinha ido almoçar na casa de “seo” Batista, amigo muito chegado e compadre de Clarindinho, que afinal não era ele um desarvorado de amigos deste mundo. Batista, cujo convite soara com muita alegria, lá estava o tenente maestro na sua vistosa e impecável farda a entabular conversa. Logo mais, às vinte horas, a banda teria de começar a tocar músicas do repertório variado embelezando, alegrando e animando aquela gente. Após o almoço o maestro teve um leito oferecido pelo anfitrião sendo de pronto aceito pelo bom maestro que caiu pesadamente sobre, adormecendo o sono dos justos, sem pesadelos ou sustos.
Clarindinho que gozava da intimidade da casa de Batista, seu compadre, chegara mais ou menos às dezoito horas para uma visita ligeira, aproveitando a ocasião tomaria sua cachacinha sagrada. A família de Batista encontrava-se pela vizinhança, uns experimentando roupas, outros fazendo maquiagens enquanto Batista saira uns minutos para voltar logo, procurando aviar algumas encomendas para a banda do Evilásio que tocaria na noite alguns dobrados e marchas da sua autoria, também maestro que era da localidade, daí a necessidade de sair até a casa do maestro para dar orientações sobre algumas coisas.
Clarindo vendo a porta semi cerrada entra, mas não viu a ninguém na casa. Dirigiu-se à velha cristaleira, apanhou um litro e experimenta uma cachacinha do velho são Francisco, entornando uma e mais uma, pensando aonde andariam seus amigos quando de repente seus olhos estancam no espaldar de uma cadeira de vime e, lá está a vistosa farda do tenente maestro da polícia.
Sem atinar para o que fazia, inconsciente pela cachaça, começa maquinalmente a vestir a farda, arruma-se sabe lá Deus como, abotoa-se do gogó até a pança e lá se vai o “tenente maestro” garboso, dois passos para a gente, dois para os lados até alcançar o velho viaduto da cidade alcançando a praça, aonde estava o palanque armado.
Com muita dificuldade consegue “escalar” o palanque. Era quase hora do primeiro dobrado. Clarindo aproxima-se do palanque, segura a batuta do maestro que estava sobre a partitura, dá dois toques e grita, fala enrolada, porém audível: Nino Nacional. Foi um passar de folhas e partituras dos pecados. A soldadesca pensando se tratasse de um outro tenente maestro vindo da capital, sem atinar para aquele bêbado quase às quedas, não perguntou nada.
Clarindo regeu a banda magistralmente. Um tenente músico que estava tocando bombardino, sugeriu: “Tenente vamos atacar de Hino a Bandeira. E assim se realizou a função. O povo dava risadas e comentava até que cansado Clarindo resolveu descer do palanque. O pessoal da banda só começaria mesmo a desconfiar de verdade quando Clarindo soltou uma gostosa gargalhada e viu Batista subir no palanque gritando pelo compadre.
- Clarindinho, você está louco?
Tarde demais. Clarindinho havia na sua façanha realizado o que só o álcool conseguira. Enquanto isto se passava bem na praça principal o tenente maestro esbaforido, vestindo uma roupa do seu anfitrião Batista, estava a cuspir fogo pela boca.
Maior decepção foi quando constatou que os seus comandados obedeceram, sem titubear, a um comando inexistente.
A noite marcaria na cidadezinha apagada e triste, como a noite do Clarindinho.
***
Itiúba, 1971.

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